O fracasso da «greve geral revolucionária de 18 de Janeiro de 1934», em
que participaram conjuntamente anarquistas, republicanos, «reviralhistas» e
comunistas marcou o ocaso em Portugal do movimento anarco-sindicalista,
desmantelado pela repressão e sem capacidade para sobreviver em condições de
clandestinidade. Depois, outras memórias hegemónicas atiraram os anarquistas
portugueses para o esquecimento, de onde também devem ser retirados. Este caso é
só um entre muitos.
José Correia Pires (CP) nasceu em 17 de Abril de 1907, em S. Bartolomeu
de Messines, concelho de Silves. Os pais, José Correia e Isabel Pires, eram
trabalhadores pobres e analfabetos, como a maioria dos portugueses. No entanto,
compreenderam a necessidade de o filho aprender a ler e escrever e colocaram-no
numa escola particular onde aprendeu as primeiras letras e depois na escola
oficial, onde fez a instrução primária até à então 5.º classe.
Profissionalizou-se como carpinteiro, por volta de 1922, num período em que, já
militando no movimento anarquista, em particular na Confederação Geral do
Trabalho (CGT), foi activista do sindicato da construção civil de Messines.
Após o golpe militar de 28 de Maio de 1926, que derrubou a I República
portuguesa e a partir do qual vigorou um regime de Ditadura Militar, tentou
criar em Messines uma organização, a Aliança Libertária, ao mesmo tempo que
colaborava em alguns semanários regionais. Em Janeiro de 1931, ano em que
haveria uma intensa agitação social e política contra a ditadura militar, CP
teve o primeiro embate com a repressão quando, com outros camaradas, abriu uma
escola na sede do Sindicato da Construção Civil de Messines, que acabaria por
ser encerrada pelo administrador do Conselho, alferes Barroso, que a considerou
subversiva.
Em protesto, CP escreveu um texto no jornal local A Voz do Sul e,
para não ser preso, dirigiu-se a Faro, onde o comandante da polícia, capitão
Maia Mendes, o tirou de apuros e conseguiu mesmo a demissão do administrador
Barroso. Esta situação foi reveladora de que havia ainda então, no seio da
Ditadura Militar, contradições, em particular na província, onde «o sentido de
repressão ainda não tinha atingido o cunho que viria a ter depois de 33 ou mesmo
como já teria em Lisboa e arredores», conforme afirmou o próprio CP nas suas
memórias.
No entanto, tudo se clarificaria na Ditadura, quando no ano seguinte António
Oliveira Salazar, ministro das Finanças desde 1928, chegou à presidência do
Conselho de Ministros. Não por acaso, foi no verão de 1932 que CP conheceu pela
primeira vez a prisão, relacionada com a luta pelas 8 horas de trabalho na
construção civil. Numas obras a decorrer numas estradas circunvizinhas de
Messines, trabalhava-se cerca de 14 horas por dia e o sindicato onde militava CP
incitou os trabalhadores a reivindicar o cumprimento da lei das 8 horas. O
«incidente» fez cair sobre ele a ameaça de prisão, pelo que teve de se ausentar
durante uns meses de Messines, embora acabasse por ser detido em Faro e enviado
para a prisão do Aljube, em Lisboa. Levado a julgamento no Tribunal Militar
Especial, acabaria porém por ser absolvido, já em 1933.
Lembre-se que, no período da detenção de CP,
começou a ser erguido o edifício do regime salazarista, Estado Novo, com a
aprovação da nova Constituição e a criação de diversas instituições, entre as
quais se contou a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE). Foi também
então que Salazar lançou os primeiros diplomas da legislação corporativa,
criando os Grémios patronais e os Sindicatos Nacionais e proibindo a partir de
então os organismos de classe que neles não se transformassem.
Ora, quando ainda se encontrava preso nos começos de 1933, já se punha,
segundo CP, «a hipótese de um movimento revolucionário feito pela CGT e sua
possível coincidência com outro dos políticos» contra a «fascização» dos
sindicatos.Tratava-se da greve geral marcada para 18 de Janeiro de 1934, numa
conjunção de esforços das três centrais sindicais existentes – anarquista,
socialista e comunista – e de um projecto insurreccional, programado
inicialmente pelos comunistas e anarquistas em conjunção com forças
reviralhistas e republicanas. No entanto tudo falhou dado que, avisada, a PVDE
conseguiu desmantelar o movimento.
Após a sua libertação da primeira prisão, CP encontrava-se no Algarve a
preparar o movimento de 18 de Janeiro de 1934, quando foi surpreendido, logo em
7 de Janeiro, «com um “achado explosivo” no sítio chamado serro grande que pôs
em alvoroço toda a vila de Messines». No processo a que CP seria sujeito em
1936, ao ser preso pela segunda vez, consta que, no início de 1934, teria
recebido em sua casa, em S. Bartolomeu de Messines, Virgílio Barroso, que havia
ido buscar a Lisboa seis bombas de estilhaços para rebentarem em 18 de Janeiro
de 1934. Procurado pela polícia, CP exilou-se em Espanha, onde chegou a ser
preso e trabalhou numa pedreira, até que regressou clandestinamente a Portugal,
em 1935, roído pelas saudades.
Vivia clandestino em Lisboa com a mulher e cinco filhos, quando se envolveu
novamente, com camaradas anarquistas e elementos republicanos, numa tentativa de
intentona. No entanto, segundo contaria CP numa entrevista dada em 1976,
infiltrou-se no grupo um elemento de ligação com os republicanos, que se propôs
arranjar-lhes armas, mas verificou-se depois que se tratava de um informador da
PVDE. CP voltou a ser preso, passando pelos cárceres do Governo Civil de Lisboa
e pela prisão do Aljube, então repleto de outros presos políticos anarquistas e,
sobretudo, comunistas, num período em que, com a eclosão da guerra civil em
Espanha, o regime salazarista sofreu um processo de endurecimento repressivo.
Lembre-se que em 1936 a PVDE prendeu 2748 pessoas por razões políticas e depois
continuou a não ter mãos a medir pois, entre esse ano e 1939, houve 9.575
detidos nos seus cárceres; ou seja uma média de cerca de 2400 detenções anuais.
Nesse período, como disse CP nas suas memórias, o ambiente entre todos os
detidos era bom, pois pairava «a ideia de “frente única” ou “frente popular”,
como vinha ocorrendo em França e em Espanha». Efectivamente os comunistas,
anarquistas, republicanos e outros oposicionistas ao Estado Novo formaram então
a Frente Popular Portuguesa (FPP), para responder ao processo de «fascização»
que se fazia sentir em Portugal. Não por acaso, foi nesse ano de 1936 que foram
formadas a milícia paramilitar Legião Portuguesa (LP) e as organizações de
enquadramento das mulheres e dos jovens (a Obra das Mães pela Educação Nacional
– OMEN -, bem como a Mocidade Portuguesa – MP – e a Mocidade Portuguesa Feminina
– MPF, em 1937).
Foi também então criado, para encarcerar os opositores políticos mais
activos, em particular os envolvidos em acções armadas, o campo de concentração
do Tarrafal, em Cabo Verde, para o qual foram enviados CP – sem ser alvo de
qualquer julgamento – e 41 outros presos políticos, em Junho de 1937. Nos oito
anos durante os quais CP permaneceu no Tarrafal, erguido sob inspiração dos
campos de concentração nazis alemães, foram sucessivamente directores seis
militares: Manuel Martins dos Reis, também chamado «Manuel dos Arames», pela sua
obsessão em vedar tudo e todos a arame farpado e em impor o isolamento absoluto
aos prisioneiros[1], José Júlio da Silva, João da Silva, Olegário Antunes,
Filipe de Barros e o capitão Pratas.
Nesse campo «da morte lenta», os presos políticos eram sujeitos a trabalhos
forçados e a tremendo castigos, contando-se entre estes a «frigideira» de
cimento – um forno durante o dia e um «frigorífico» durante a noite – e a
célebre «brigada brava», de trabalhos duríssimos, criada pelo chefe de guardas
Henrique de Sá e Seixas, no período «mais duro» do campo, quando este era
dirigido pelo capitão João da Silva. CP sofreu todos esses tormentos, incluindo
duas estadias na «frigideira» e trabalhos forçados na «brigada brava», até
regressar, «amnistiado» sem nunca ter sido julgado, a Lisboa, em 1945.
Após umas semanas no forte de Caxias, acabou por ser solto em 12 de Março
desse ano, fixando-se em Almada. Começou por trabalhar nos estaleiros navais da
Rocha do Conde de Óbidos e depois voltou à sua profissão de marceneiro até se
estabelecer durante um período com uma carpintaria em Almada. Manteve sempre uma
actividade associativa e cooperativa, tendo sido fundador da Cooperativa de
Panificação – SulCoop, enquanto delegado da Sociedade Cooperativa de Consumo
Almadense, do qual foi dirigente. Entre 1956 e 1957, foi presidente da
Assembleia-geral da Sociedade Filarmónica Incrível Almadense, da qual foi ainda,
em 1958, delegado a Federação.
Em Fevereiro de 1974, José Correia Pires foi denunciado à DGS por ter
participado numa sessão comemorativa – autorizada – do 31 de Janeiro de 1891, na
Academia Almadense. Após 25 de Abril de 1974, publicou dois livros, Memórias
de Um Prisioneiro do Tarrafal e A revolução Social e a sua
Interpretação Anarquista, ao mesmo tempo que se manteve politicamente
interveniente, escrevendo diversos artigos, no Jornal de Almada e
no mensário, Voz Anarquista, em defesa do anarquismo e do
cooperativismo. Em 16 de Julho de 1976, José Correia Pires casou com Maria
Guerreiro Correia, na conservatória de Almada, mas faleceria, poucos meses
depois, em 28 de Outubro de 1976.
[1] Memórias de Um Prisioneiro do Tarrafal, Edições
Dêagá, 1975, pp. 283
Fontes e bibliografia
Arquivo da PIDE/DGS, José Correia Pires, processos SPS 600, SPS 2410 e
878/74«A revolução Social e a sua Interpretação Anarquista, um novo
livro de Correia Pires», Jornal de Almada, 12/11/75, p. 2