segunda-feira, 2 de março de 2015

O SONHO DE PASSOS COELHO

Um terço é para morrer... no Público de ontem
O sonho de Pedro Passos Coelho
José Vítor Malheiros
(no Público de ontem)



«"Um terço é para morrer. Não é que tenhamos gosto em matá-los,
mas a verdade é que não há alternativa. se não damos cabo deles,
acabam por nos arrastar com eles para o fundo. E de facto não os
vamos matar-matar, aquilo que se chama matar, como faziam os
nazis. Se quiséssemos matá-los mesmo era por aí um clamor que
Deus me livre. Há gente muito piegas, que não percebe que as
decisões duras são para tomar, custe o que custar e que, se nos
livrarmos de um terço, os outros vão ficar melhor. É por isso que
nós não os vamos matar. Eles é que vão morrendo. Basta que a
mortalidade aumente um bocadinho mais que nos outros grupos. E
as estatísticas já mostram isso. O Mota Soares está a fazer bem o
seu trabalho. Sempre com aquela cara de anjo, sem nunca se
desmanchar. Não são os tipos da saúde pública que costumam
dizer que a pobreza é a coisa que mais mal faz à saúde? Eles lá
sabem. Por isso, joga tudo a nosso favor. A tendência já mostra isso
e o que é importante é a tendência. Como eles adoecem mais, é só
ir dificultando cada vez mais o acesso aos tratamentos. A natureza
faz o resto. O Paulo Macedo também faz o que pode. Não é
genocídio, é estatística. Um dia lá chegaremos, o que é importante
é que estamos no caminho certo. Não há dinheiro para tratar toda a
gente e é preciso fazer escolhas. E as escolhas implicam sempre
sacrifícios. Só podemos salvar alguns e devemos salvar aqueles
que são mais úteis à sociedade, os que geram riqueza. Não pode
haver uns tipos que só têm direitos e não contribuem com nada,
que não têm deveres.
Estas tretas da democracia e da educação e da saúde para todos
foram inventadas quando a sociedade precisava de milhões e
milhões de pobres para espalhar estrume e coisas assim. Agora já
não precisamos e há cretinos que ainda não perceberam que, para
nós vivermos bem, é preciso podar estes sub-humanos.
Que há um terço que tem de ir à vida não tem dúvida nenhuma.
Tem é de ser o terço certo, os que gastam os nossos recursos todos
e que não contribuem. Tem de haver equidade. Se gastam e não
contribuem, tenho muita pena... os recursos são escassos. Ainda no
outro dia os jornais diziam que estamos com um milhão de
analfabetos. O que é que os analfabetos podem contribuir para a
sociedade do conhecimento? Só vão engrossar a massa dos
parasitas, a viver à conta. Portanto, são: os analfabetos, os
desempregados de longa duração, os doentes crónicos, os
pensionistas pobres (não vamos meter os velhos todos porque nós
não somos animais e temos os nossos pais e os nossos avós), os
sem-abrigo, os pedintes e os ciganos, claro. E os deficientes. Não
são todos. Mas se não tiverem uma família que possa suportar o
custo da assistência não se pode atirar esse fardo para cima da
sociedade. Não era justo. E temos de promover a justiça social.
O outro terço temos de os pôr com dono. É chato ainda precisarmos
de alguns operários e assim, mas esta pouca-vergonha de
pensarem que mandam no país só porque votam tem de acabar.
Para começar, o país não é competitivo com as pessoas a viverem
todas decentemente. Não digo voltar à escravatura - é outro papão
de que não se pode falar -, mas a verdade é que as sociedades
evoluíram muito graças à escravatura. Libertam-se recursos para
fazer investimentos e inovação para garantir o progresso e permite-se
o ócio das classes abastadas, que também precisam. A chatice
de não podermos eliminar os operários como aos sub-humanos é
que precisamos destes gajos para fazerem algumas coisas chatas
e, para mais (por enquanto), votam - ainda que a maioria deles ou
não vote ou vote em nós. O que é preciso é acabar com esses
direitos garantidos que fazem com que eles trabalhem o mínimo e
vivam à sombra da bananeira. Eles têm de ser aquilo que os
comunistas dizem que eles são: proletários. Acabar com os direitos
laborais, a estabilidade do emprego, reduzir-lhes o nível de vida de
maneira que percebam quem manda. Estes têm de andar sempre
borrados de medo: medo de ficar sem trabalho e passar a ser subhumanos,
de morrer de fome no meio da rua. E enchê-los de futebol
e telenovelas e reality shows para os anestesiar e para pensarem
que os filhos deles vão ser estrelas de hip-hop e assim.
O outro terço são profissionais e técnicos, que produzem serviços
essenciais, médicos e engenheiros, mas estes estão no papo. Já os
convencemos de que combater a desigualdade não é sustentável
(tenho de mandar uma caixa de charutos ao Lobo Xavier), que para
eles poderem viver com conforto não há outra alternativa que não
seja liquidar os ciganos e os desempregados e acabar com o RSI e
que para pagar a saúde deles não podemos pagar a saúde dos
pobres.
Com um terço da população exterminada, um terço anestesiado e
um terço comprado, o país pode voltar a ser estável e viável. A
verdade é que a pegada ecológica da sociedade actual não é
sustentável. E se não fosse assim não poderíamos garantir o nível
de luxo crescente da classe dirigente, onde eu espero estar um dia.
Não vou ficar em Massamá a vida toda. O Ângelo diz que, se
continuarmos a portar-mo-nos bem, um dia nós também vamos
poder pertencer à elite."»
O pior disto tudo é que todos nós andamos enganados.
Como bons portugueses, isto só vai acontecer aos outros.
Nunca é a nós, é sempre ao vizinho.

Um abraço
J. António Pereira
"Conquistámos liberdades, é preciso defendê-las.
Só a democracia transforma o povo em cidadãos responsáveis."
Alain Touraine, 2010
(REFERENDO NACIONAL, ao Estado-social)