terça-feira, 19 de maio de 2020

O Fim de um Mundo não é o fim de tudo


Entrevista a Déborah Danowsky e Eduardo Viveiros de Castro
Andrea Cavalletti

Autora de ensaios sobre Leibniz e Hume, Danowski lecciona filosofia no Rio de Janeiro. Viveiros de Castro, teórico do « Multinaturalismo» e do « Perspectivismo Amerindio», é um dos Antropólogos mais influentes do Mundo. Ambos muito activos na frente ambientalista, carregaram essa sua causa com uma voltagem teórica que tem, também ela, raízes comuns num livro, escrito a duas mãos, intitulado Há Mundo para vir? Ensaio sobre os mêdos e os fins ( 2014).
   Este trabalho penetrante e inovador, muito admirado por Bruno Latour, enfrenta o tema mais urgente e difícil que existe, ou seja, aquilo a que chamamos, para usar o termo difundido pelo prémio Nobel Paul Crutzen, «Antropoceno»:
a era das assustadoras alterações climáticas produzidas pelo Homem. É certo que Danowski e V. de Castro não têm ilusões: O Nosso Tempo é o Tempo de Fim.


 1.
                                                                             

O fim do nosso mundo, ou seja, do Mundo Ocidental e Capitalista, não é o fim de tudo, advertem ambos autores. E testemunho disso são os povos Amazónicos a quem todas as coisas violentamente subtraídas e que, exterminados e reduzidos pelos conquistadores ao estado de «Homens sem Mundo», numa expressão de Anders), souberam resistir - inventando estilos e técnicas refinadas de sobrevivência, bem como mitos nos quais, ao contrário dos nossos, o fim do Mundo não coincide de todo com o fim da vida. Como conseguiram fazê-lo? Em primeiro lugar, porque sempre estiveram livres do nosso antropocentrismo dogmático e vivem sob o alerta do seu antropocentrismo universal. 
Cada Ser, tem de facto, para os Índios, uma alma humana; mais precisamente: cada ser vê-se a si próprio como um homem e vê, como homem os da sua espécie e não como predadores ou ameaças para si. Portanto, cada interação entre espécies torna-se uma « intriga internacional , uma negociação diplomática ou uma operação de guerra que deve ser conduzida com a máxima circunspecção».
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   Por isso, os ameríndios jamais poderiam acreditar na politica como acção unilateral sobre aquilo que os rodeia, nem conceber a natureza como um mero recurso. Eles que não têm Estado e não se reconhecem sequer como um povo, pensam, pelo contrário, que tudo é negociação, tudo é social, que a vida de cada individuo é uma autentica associação de seres, e que a politica e a sociedade não tratam do ambiente, antes coincidem, em certo ponto, com o próprio ambiente. O que nós chamamos de" ambiente" é para eles uma sociedade de sociedades, uma arena internacional, uma Cosmopoliteia. Não há portanto diferença absoluta de estatuto entre sociedade e ambiente, como se a primeira fosse o"sujeito", o segundo o"objecto". Todo o objecto é sempre mais um sujeito e é sempre mais um.s de
   Os Índios segundo Danowski e Viveiros de Castro, podem servir-nos de exemplo inspirador. Viver a nossa situação complicada, cheia de nuances, difícil de definir, significa também para nós sobreviver, abandonar hábitos prejudiciais e atitudes suicidas em prol de uma vida de resistentes, significa sobretudo levar a cabo uma tomada de consciência; conhecer os fenómenos, receá-los, ou melhor, começar finalmente a ter todo o medo que é preciso para deles ter uma verdadeira consciência. E significa reconhecer as forças em jogo, desde os relatos ou os sermões espectaculares e seus efeitos e ressonâncias; a entrada do Vaticano na discussão ou a aparição contemporânea do Manifesto Eco Modernista ( An Ecomodernist Manifesto),encabeçado pelo Break Through Institute e subscrito por muitas celebridades pró-capitalistas, mas na verdade, nada distante das visões apologéticas de certos Leninistas actuais. Também à esquerda, alguns-por exemplo, Nick Srnicek e Alex Williams, com o seu Manifesto Aceleracionista ( Accelerate Manifesto for na Acceleracionist Politics)- defendem, com efeito, que para sobreviver ao Antropoceno seria preciso aproveitar, cada avanço tecnológico e cientifico do Capitalismo Tardio. Pensam que, contra a «fetichização da abertura, horizontalidade, e inclusão de uma boa parte da actual esquerda"Radical", se deveria recorrer a « sigilo, verticalidade e exclusão» para acelerar o « processo de evolução tecnológica», para libertar as forças produtivas latentes: como se estes avanços não consistissem na redução da técnica a um mero aparato de exploração(do Homem e também da Natureza), como se « evolução» fosse um valor indiscutível, como se «produção» não significasse destruição do Mundo.
   Para nos salvar das nossas mitologias nefastas, enquanto o globo reage ao nosso domínio com a violência de um gigante enlouquecido, os Índios virão do futuro próximo ao nosso encontro. Há Mundo para vir??? É o seu mensageiro...

2.
  

              ( Eduardo Viveiros de Castro e Deborah Danowski)
A Terra sempre «anotou» ou registou os efeitos do Homem na Natureza, mas nunca se dobrou à dominação Humana, ao contrário do que pensam os modernos com sua ideologia de Progresso. Nós ( ou melhor, as civilizações que deram origem à modernidade capitalista Ocidental) vivemos há já alguns séculos, como se o Mundo, de que somos apenas uma parte, fosse feito de matéria inerte e de seres vivos inferiores, o que nos daria todo o direitos sobre eles, que não passariam de recursos infinitos levados « grátis» ou escravos mudos ao nosso serviço. Mas qualquer acção causa uma reacção, como toda a gente sabe. Portanto, não se trata propriamente de uma novidade; o que é novo é antes a escala destas«reacções», cuja soma nos fez passar do Holoceno para o Antropoceno.
  Entramos num Mundo verdadeiramente desconhecido; desconhecido não só para a nossa Civilização, mas, em alguns aspectos, para a espécie de Homo Sapiens como um todo. Por isso, sim, passamos ou estamos prestes a passar todos os limites definidos pelas organizações científicas internacionais, como o aumento máximo da temperatura global de 1,5 graus a que o acordo de Paris faz referência. Já passamos os 350 ppm de Co2 atmosférico, designado como o limite de concentração acima do qual entraríamos em terreno muito perigoso e fora de controlo (Há alguns dias atingimos os 410 ppm. O gelo do Árctico está condenado, seguido do Antárctico e da Gronelândia. Estamos em plena sexta extinção em massa da História da Terra. Que podemos fazer? É preciso admitir que ninguém sabe exactamente, mas, de qualquer maneira, é preciso ainda e sempre agir, abrandar e mesmo travar a nossa fuga para a frente.
  Ainda falamos como se o Mundo existisse para a satisfação da vontade soberana do desejo humano e também, paradoxalmente, como se não houvesse outras formas de viver, como se sair do nosso modo de vida« Moderna» nos fizesse cair no caos absoluto. Não podemos fazer tudo; existem limites de todo o tipo e por todo o lado, não podemos escolher tudo o que queremos conservar nem tudo o que concordamos abandonar à sua sorte- o que não nos impede de agir e viver de múltiplas maneiras e em conjunção com outros seres vivos. Ora, se tentar-mos imaginar como será a vida( humana e extra-humana) daqui a uns 50 anos, digamos, veremos que, quer queiramos quer não, será muito diferente da nossa vida presente. Haverá ainda viaturas individuais e estradas a cobrirem grande parte do planeta? Haverá as mesmas empresas que dominam o mercado actual? Será a Floresta Amazônica ainda uma floresta, ou uma savana semi- árida? Será que as calotas de gelo ainda existirão? Haverá peixes nos Oceanos, e terão as regiões desérticas aumentado exponencialmente? Ainda haverá países, no sentido de Estados-Nação?E os refugiados ambientais. Seremos todos nós refugiados? O que será dos Índios e de outros colectivos extra modernos? Como se fará a distribuição dos últimos recursos? E as guerras? Isto para concluir que; embora seja verdade que o Antropoceno nos obrigará a enfrentar inúmeros limites, tanto antigos como novos. Mas também é certo quando certos Mundos se fecham, outros se abrem...e é nesses Mundos que devemos aprender «a viver com» - to stay with the trouble - como propôs Donna Haraway.



2.  Enquanto Antropólogos, Viveiros de Castro e Danowski, vivem há muito tempo com os Ameríndios. E, como sublinham, 80 anos depois de Lévi- Strauss, os ameríndios são bem mais numerosos. Nós devemos seguir o seu exemplo. Porquê? O que é que nos podem ensinar?
       Parece que que os índios nos ensinam pelo menos duas coisas: 1- Como sobreviver num Mundo( No caso deles, as Américas) que foi devastado por uma civilização inimiga que se julgava acima do Mundo inteiro (A Terra), por isso, como tendo direitos de soberania sobre tudo o que existe- civilização que, ironicamente, se encontra perto da posição de inimiga de si mesma; 2- como dar-mos conta que a Terra não nos pertence, somos nós a que ela pertencemos.
        As Civilizações ameríndias - e muitas outras que ainda se encontram em estado de insubmissão  espiritual face ao capitalismo - não devem ser usadas como Modelo do que quer que seja; elas não têm receitas para o futuro. São antes um Exemplo, algo diferente de Modelo. O Modelo é uma ordem normativa que impomos a outrem e que este só pode copiar de forma de forma imperfeita. Os modelos são coisa do FMI ou do Banco Mundial para os países «em vias de desenvolvimento». O exemplo, pelo contrário, é algo que nos inspira a fazer« diferente de forma parecida», « ou parecido de forma diferente». Em suma: O Modelo é vertical e hierático, enquanto o Exemplo é horizontal e rizomático. Então qual será o Modelo que nos é oferecido pelos índios e outros povos tradicionais? Este, muito simplesmente: como viver, insistir em existir, num Mundo que lhes foi roubado, invadido e devastado por uma Civilização estrangeira e incompreensível. O paradoxo da presente situação planetária encontra-se no facto dessa Civilização estrangeira e incompreensível ser a «nossa» própria, a pretensa« Civilização Global»- ou segundo Félix Guattari- O Capitalismo Mundial Integrado.
Resultado de imagem para fotos de Indios brasileiros         Segundo os autores deste texto; os ameríndios, como de resto os pequenos agricultores do Nordeste Brasileiro, os Inuit e os povos da Oceania prestes a ser submersas, sabem o que se passa, mesmo que não usem expressões como« alterações climáticas», «aquecimento global», etc. Aliás, citamos no nosso capitulo do livro "Há Mundo para vir?",«O Fim do Mundo dos Indios», esta frase do xamã yanomami David Kopenawa:" Os brancos não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu. Mas um dia eles terão medo, talvez tanto como nós!» Portanto, sim, eles estão bem a par do que se passa têm muito medo disso. O desregramento ou dessincronização dos ritmos e ciclos da Natureza tornaram-se «regra», transtornando gravemente as práticas de subsistência de todos os povos tradicionais: já se não sabe o tempo de fazer este ou aquele cultivo,dado que o regime biossemiótico do ambiente se tornou imprevisível. Ou, para citar o pensador e activista Russell Means (Oglala Siox), cujo papel na revolta de Wounded Knee em 1973 é bem conhecido:


Os Índios andam há séculos a tentar explicar isto aos Europeus. Mas como disse antes, os europeus têm-se mostrado incapazes de ter medo. A ordem natural acabará por vencer, e os infractores morrerão, como morrem os veados quando perturbam a harmonia ao sobrepovoarem uma região. É só uma questão de tempo até ocorrer o que os europeus chamam um « enorme catástrofe de proporções globais». Aos povos povos índios americanos pede-se que sobrevivam, assim como a todos os seres naturais.  Parte da nossa sobrevivência consiste em resistir. Resistimos não para derrubar um governo ou tomar o poder politico, mas porque é natural resistir à exterminação, sobreviver. Não queremos poder sobre as instituições brancas; queremos que as instituições brancas desapareçam. É essa a REVOLUÇÃO!!!.




                                                    Ghost Dance   Wonded Knee                                                    

3.  Muito se tem dito nos últimos tempos sobre o medo e outros afectos respeitantes ás alterações climáticas. Há quem diga, simplesmente, que os que têm medo da crise ecológica exageram, que são pessimistas, «catastrofistas» até. outros como Naomi Klein ( The Shock Doctrine) explicam-nos de de maneira bastante interessante como se transformou o medo em politica de estado, como a shock and awe doctrine paralisa as populações e permite aos governos neoliberais implantarem politicas económicas particularmente nocivas para os mais pobres e classes médias. Ainda há outros que creem que a situação é grave, mas que não se deve« meter medo». A nossa posição é mais próxima da de um Gunther Anders ou de um Hans Jonas, filósofos que acreditavam no potencial profilático do medo. Porque o medo (Tal como a morte, aliás) não deve ser apropriado pela direita e suas politicas sobre o ambiente. O importante é reapropriar-mos dos afectos, não os deixar nas mãos daqueles que estão a destruir a floresta e os ecossistemas.

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4.   Conclusão: Há dois anos, o papa fez uma intervenção com a encíclica Laudato si; pouco antes tinha aparecido o Manifesto Eco Modernista, vejamos pois os dois aspectos:

       O Manifesto Eco Modernista prega um« capitalismo pós-industrial e vibrante», com soluções tecnológicas centralizadas e um pesado investimento material e energético( fracturação hidrálica, centrais nucleares, grandes projectos hidrálicos, monocultura de vegetais transgénicos, geoengenharia ambiental, etc). Enquanto a Laudatos si' propõem um regresso à «simplicidade», em oposição ao consumismo e à «alucinação de um crescimento infinito ou ilimitado», em suma, a convicção de que Small is Beautiful. Os autores do Manifesto afirma que Big is Beautiful: em vez de diminuir, abrandar, devemos produzir ainda mais, ir mais depressa, inovar, crescer sempre e prosperar; sem hesitações, sem vergonha, sem arrependimentos. Enquanto a encíclica nos alerta para o perigo de tomar o desenvolvimento tecnológico para um« paradigma homogêneo e unidimensional e, fazendo eco dos protestos dos climatologistas e outros cientistas, insiste no clima de precaução e remete para uma travagem radical das práticas ecologicamente irresponsáveis( as quais permitem lucros enormes destruindo culturas e formas de vida em todo o planeta, devastando ecossistemas e contaminando a «nossa casa comum». Por outro lado, os autores do Manifesto Eco Modernista, bem pelo contrário, acreditam que, desde que prossigamos a nossa fuga para a frente, «modernizando a modernização» (para falar como Ulrich Beck), não teremos nada a temer: a mesma tecnologia que hoje nos envenena acabará por corrigir- não se sabe como - esses «danos colaterais», e servirá para alimentar luxuosamente os 10 milhões de pessoas( humanas, claro; nem se fala dos outros milhares de milhões de seres vivos) que povoarão o mundo em meados deste século. Desta forma, creem eles, poderemos garantir a«todos» (talvez aos 1%) um«Bom», talvez um«Grande Antropoceno», no qual poderíamos continuar a viver não apenas como se vive hoje nos países desenvolvidos, mas espalhar essa abundância por todos os povos do Mundo. Enquanto a Enciclica tem em consideração a imensa diversidade de culturas e formas de vida, os ecomodernistas só vêem um via para todos; a da tecnologia de« ponta» que se funda na Big Science e no grande capital Internacional que supostamente atingirá um estado óptimo, reduzindo praticamente a zero  os seus custos materiais e seus impactes ambientais.
    Assim, não é por acaso que os autores desse documento acusam Francisco de ser «um papa contra o progresso», ao mesmo tempo que denunciam a « tendência religiosa» dos discursos ecologistas, tais como o «pecado», a«redenção» e o catastrofismo apocalíptico face ás alterações climáticas. Ora, não se percebe bem como é que o autor de uma encíclica que acolhe o consenso  científico acerca do mais grave desafio jamais enfrentado pela espécie humana, O ANTROPOCENO, pode ser acusado de «ser contra o progresso». A não ser, claro, que por «progresso» se entenda o wishful thinking tecnófilo dos autores do Manifesto. Feitas as contas, parece-nos que são eles que, como bons cristãos, acreditam que depois do Apocalipse virá o reino de Deus.








                                                              F   I   M